Crônica do Dia – Verdade ou consequência? – Por Nádia Coldebella

Aninha ainda era muito criança quando se deu conta que a vida era um jogo.
– Verdade ou consequência?
É a pergunta do jogo. Que ela respondeu com outra pergunta.
– E o que dói menos?
É que as duas, verdade e consequência, doíam. Uma doía menos. Só que imediatamente. Dolorosamente.
Mas ela não queria sentir dor. E então a pergunta mudou.
– Qual dor demora mais para chegar?
E ela fez sua escolha.
(Mas na hora em que a dor doeu, ela se arrependeu de não ter escolhido a dor rápida. Logo depois, esqueceu do arrependimento e repetiu tudo novamente),
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Ana já era uma moça quando definiu uma vida sem dor como seu objetivo.
Evitar a dor num mundo que só doía.
– Que preço se paga para não doer?
E ela entendeu que era assim que nasciam os pactos de sangue com o mundo trevoso.
O preço para não doer era dor. Consequência.
Dor sentida, não percebida.
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Esse tipo de dor é igual a sapato apertado, Ana pensou, já adulta. Um dia você volta de uma festa e só se dá conta do alívio quando tira o sapato.
É um alívio sentir a dor nos dedos quando se tira o sapato.
Os dedos estão livres.
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– Um grande paradoxo.
Ela pensou na meia idade, ao se dar conta que lutava com todas as forças para não doer.
Lutava tanto que doía.
Mas nessa época ela já havia aprendido a fechar os olhos e a se convencer que sua cegueira alcançava também quem tinha os olhos abertos.
Não é que ela estivesse cega.
Estava apenas de olhos fechados, mas havia se convencido da própria cegueira.
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Foi no início da velhice que Dona Ana se deu conta que a dor que doía menos era a dor da verdade.
– Verdade ou consequência?
Ela passou a vida inteira escolhendo consequência para não sentir a dor da verdade.
Viveu a vida inteira com o pé dolorido dentro do sapato.
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Já bem velhinha, vó Aninha compreendeu que devia ter aberto os olhos e contemplado a verdade.
– E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.
A verdade não doía tanto, afinal. Era uma dor urgente, dolorosa. Mas passava rápido.
Era uma dor logo esquecida.
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No final do jogo, Aninha abriu bem os olhos e disse:
– Verdade.
Mas não havia mais tempo para brincar.
Ela logo fecharia os olhos para sempre.
Nádia Coldebella é paranaense de espírito, corpo e coração. Formada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá e mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já fez um pouco de tudo dentro da área de Psicologia: atuou como psicóloga clínica, professora universitária, psicóloga organizacional e palestrante. Atualmente, é servidora pública, atuando como psicóloga judiciária. Escreve, desenha e pinta desde a infância e é na arte que reside sua alegria. Gosta de escrever sobre a vida, os dramas e os conflitos dos corações humanos. Também gosta de um pouco de sarcasmo em suas histórias. É mulher trabalhadora, esposa e mãe e como outras tantas nesse mundo, sonha em construir um mundo melhor, mais equilibrado e sensato, um lugar em que suas filhas possam sentir-se livres para ser aquilo que vieram ser.